domingo, 8 de novembro de 2015


Link to the PhD thesis / Link para a tese de doutoramento - Pedro Chambel: Os Animais na Literatura Clerical Portuguesa dos Séculos XIII e XIV - Presença e Funções
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Introdução

  Na Idade Média, a natureza impunha-se à sociedade, marcando os seus ritmos, quotidianos e a própria sobrevivência das comunidades. Na verdade, a sociedade medieval, sendo maioritariamente rural, receava a natureza e as consequências muitas vezes negativas que ela podia trazer à estabilidade económica e social. Em grande parte temida, era por isso respeitada e sacralizada no âmbito duma mentalidade fundamentalmente mágica, mesmo quando os clérigos se referiam à força e aos poderes da natureza como manifestações e revelações que remetiam para o Criador e para a sagrada capacidade de dispensar graças e punições.
  De facto, S. Agostinho, seguindo uma linha de pensamento que remontava à patrística grega, concebia o mundo como um livro de origem divina que, à semelhança das Sagradas Escrituras, precisava de ser lido e descodificado em função do seu Demiurgo e Criador. Ora, esta visão cosmológica, com grandes repercussões no desenvolvimento de um pensamento que encarava a natureza como um conjunto de símbolos e manifestações divinas, afastava qualquer tentativa de olhar o mundo físico como realidade a analisar e a manipular. Durante a Idade Média rural, o olhar letrado sobre a natureza fazia-se com base na comunicação entre o homem e a divindade e passava por um caminho que privilegiava a interiorização mística.
  Uma tal interpretação alegórico-simbólica da natureza foi sobretudo transmitida pelos lapidários, herbários e bestiários. Com base no Physiologus, um texto cristão provavelmente elaborado em Alexandria, apresentavam os comportamentos e as características que a tradição letrada da tradição da Antiguidade Clássica atribuíra aos animais e outros elementos e seres da natureza como símbolos de um mundo concebido enquanto manifestação do Criador e por ele destinado a comunicar as vivências e as condutas a seguir pelos cristãos. De resto, todas estas obras também tiveram nas Etimologias, a grande obra enciclopédica escrita no século VII pelo bispo hispânico Isidoro de Sevilha, uma fonte decisiva, dado os conhecimentos herdados do helenismo tardio e da cultura letrada romana nela se encontrarem sistematicamente explicados por um método etimológico-analógico que acentuava e desenvolvia o suposto carácter teofânico das manifestações naturais.
  Por outro lado, também então as hagiografias, divulgadas pelos clérigos, começaram a contribuir para a difusão da imagem dos animais enquanto seres mediadores ou evocadores da suposta santidade dos eleitos, sobretudo porque se apresentavam como objecto dos milagres dos santos, na linha, aliás, do que numerosos apócrifos do Novo Testamento assinalavam, nomeadamente, a respeito dos prodígios que teriam protagonizado os eleitos e o próprio Cristo na sua infância(1). Tudo isto, enquanto a arte medieval cristã desenvolvia os processos da representação simbólica da natureza e dos seus seres através da apresentação dos animais enquanto sinais identificadores, ora dos homens tocados pela graça divina, ora da obra do Criador, como dos então considerados mais significativos momentos das Sagradas Escrituras.
  Em suma, devidamente enquadrados pela oratória dos clérigos, os animais assumiam-se como símbolos de particular eficácia, conduzindo o homem para a contemplação da obra de Deus, por via de um processo “revelador” dos princípios da fé cristã e do próprio Demiurgo para os quais remetiam. Um exemplo maior encontra-se na representação simbólica dos quatro evangelista por três animais e um homem, segundo uma iconografia que teve a sua origem teórica em S. Irineu, e que remete, quer para os momentos mais decisivos da vida terrena de Cristo, quer para as principais virtudes humanas(2), significando que “Cristo Redentor não se isola no Céu”, mas, “pelo contrário, comunica com os homens por meio da sua Palavra” (3).
  No entanto, se o pensamento simbólico dos clérigos tende a influenciar ou a sobrepor-se a uma visão mágica do mundo físico, nunca chegou a anular a presença de uma representação quotidiana e vivencial dos animais, dado ela ser própria de uma sociedade rural que se apresentava marcada pelo contacto íntimo dos humanos com os seres que com eles conviviam, acompanhando-os, servindo-os, ameaçando-os ou dando-lhes as matérias-primas essenciais para a sua reprodução social. De facto, essa outra realidade apontava para a possibilidade de uma visão do mundo e da natureza bem diferente da transmitida pelos letrados cristãos.
  A partir do século XII, a expansão rural permitida pelas grandes arroteias e o paralelo desenvolvimento das vilas e cidades, possibilitaria a progressiva afirmação de um novo olhar sobre a natureza, feito a partir das comunidades urbanas onde a dependência social tende a ser menos forte do que a vigente no mundo rural tradicional. A natureza passa então a associar-se às matérias-primas que podiam e deviam ser obtidas, trabalhadas e comercializadas, começando, portanto, a ganhar forma a progressiva distanciação homem-natureza que iria despertar o lento desenvolvimento de uma visão racionalizante do mundo.
  Entretanto, ao possibilitar a prática do enfrentamento com as forças inóspitas do mundo natural, o movimento das arroteias também começara a marcar as comunidades rurais com a ideia de um seu possível triunfo sobre a natureza, tal como então o demonstrava a acção da ordem de Cister que, num labor de ordenação natural, construía os seus mosteiros nos lugares outrora dominados pelas incontroladas e temidas forças naturais. Ao mesmo tempo que os espaços das grandes florestas passavam agora a ser progressivamente habitados por comunidades que tinham tido percursores nos eremitas, os religiosos que neles se refugiaram para viver uma vida de reclusão e de contemplação bem longe dos tumultos das cidades. Como afirma J. Le Goff, é a partir do século XII que a “própria floresta está toda ela marcada por signos cristãos”(4).
  De acordo com Aron I. Gurevitch, assiste-se a partir de então aos começos de uma irreversível “«reabilitação» do mundo e da natureza”. Mais habilitados a agir sobre o mundo circundante, os homens do século XII começam a considerá-lo mais atentamente, ao mesmo tempo que o estudo e a explicação da natureza suscitam um interesse crescente. Contudo, não se trata propriamente da natureza enquanto tal, dado não ser concebível em si mesma, fora da condição de criação de Deus e forma de o glorificar(5).
  Com efeito, quando os filósofos do século XII falam da necessidade de estudar a natureza, referem-se à necessidade de a conhecer para o homem nela se descobrir si próprio e de, através desse conhecimento, progredir rumo à compreensão da ordem divina e do próprio Deus. No fundo, a observação da natureza processa-se no âmbito de uma fé na unidade da beleza do mundo, mas ao mesmo tempo, de que este fora criado por Deus para fornecer ao homem o lugar central. Citando mais uma vez Gurevitch, a “natureza era compreendida como um espelho no qual o homem podia contemplar a imagem de Deus”(6). Seria então através dela que o homem podia comunicar com Deus, partindo da observação da sua criação para sobre ela meditar e assim alcançar o conhecimento de si próprio, ou seja, o do centro da obra divina e da própria divindade.
  Porém, paralelamente, a grande penetração de textos letrados de origem greco-romana e, em particular, as traduções e comentários árabes dos tratados de Aristóteles, sobretudo intensas a partir do último quartel do século XII, marcavam, decisivamente, o desabrochar de uma nova cosmovisão. Segundo José Acácio Aguiar de Castro, “para a medievalidade, tratava-se não só do contacto de um novo sistema” de organização e funcionamento do Universo, “mas sobretudo de uma reformulação completa dos princípios de abordagem de fenómenos naturais, dando primazia ao princípio da causalidade física, à descoberta organicista e mecanicista dos fenómenos naturais”(7). Na verdade, assistia-se então, a partir dos textos aristotélicos, à difusão de uma monumental obra teórica, baseada na observação dos fenómenos naturais e pronta a criar roturas no método simbólico-alegórico de decifração da natureza.
  De facto, foi entre os letrados urbanos que se começaram a abrir novos caminhos e perspectivas de análise dos fenómenos e elementos naturais, advogando-se e praticando-se várias propostas experiencialistas para encontrar e enunciar as leis que regiam a natureza. Contudo, se as cidades do século XII marcam os primórdios da afirmação de uma visão racionalizante do mundo, nunca a sociedade medieval deixou de permanecer tributária a uma concepção simbólico-alegórica da natureza, mesmo durante a Baixa Idade Média.
  É neste contexto, aliás, que se justifica a utilização de textos elaborados nos séculos XIII e XIV para caracterizar a forma como se manifestou e difundiu a concepção simbólica e sacralizada da natureza, sobretudo os que tiveram origem em centros de produção letrada.
  De resto, sendo o objectivo da presente investigação o estudo da presença e das características da representação dos animais num tal conjunto de textos, em ordem a definir e detectar a forma como moldaram e influenciaram as concepções dominantes do mundo e da natureza na sociedade medieval portuguesa, não nos restavam muitos e significativos testemunhos anteriores. Com efeito, antes do século XIII, não seria possível dispor de um corpus letrado susceptível de permitir um inquérito deste tipo, visto até então serem muito escassos os textos disponíveis em galaico-português, não havendo, para além disso, qualquer garantia de que as fontes latinas legadas pelo Portugal do século XII tivessem sido certamente produzidas ou até lidas pelos letrados do reino. Na verdade, de uma forma geral, é apenas a circunstância de que todos os textos a seguir estudados se encontrarem redigidos em língua vulgar, o que permite considerar as imagens dos animais neles registadas como representativas das concepções presentes entre um grupo que influenciou culturalmente uma significativa parcela da sociedade medieval portuguesa.
  Por outro lado, se tivéssemos em conta para o presente trabalho a produção literária do mesmo tipo elaborada no país de Quatrocentos, seria muito difícil nela não deparar com influências mais ou menos directas das novas representações urbanas acerca da natureza. Ao mesmo tempo que num plano prático, passaríamos a dispor de um conjunto demasiado extenso de obras a investigar e a analisar.
  Contudo, apesar de defendermos a pertinência metodológica do recorte cronológico escolhido, o dos séculos XIII e XIV, nem sempre se revelou fácil ou aconselhável cumpri-lo rigorosamente. Em primeiro lugar, porque permanecem várias indefinições e incertezas sobre a precisa centúria da produção de muitos textos entre os editores e os estudiosos, levando-nos a seguir, em princípio, as propostas de datações mais recentes que recuam algumas datas da respectiva elaboração ou primitiva redacção. Em segundo lugar, porque existindo algumas obras imprecisamente atribuídas aos começos do século XV, como seja o Horto do Esposo, conservam, a par se inovadoras influências aristotélicas, muitas das características próprias de textos anteriores, sendo, portanto, desaconselhável não ter em conta os seus dados para ampliar e aprofundar a nossa investigação.
  Assim, considerando a existência de critérios de ordem temática ou tipológica que, em alguns casos, se sobrepuseram aos de ordem cronológica de produção, baseámos o nosso estudo num total de trinta e sete textos, encontrando-se explicitados no corpo da investigação, quando polémicas, as razões da respectiva selecção. Em anexo, figura, por outro lado, a especificação e contabilização dos animais relativa à presença destes nos textos clericais em cada grupo temático considerado, por ordem alfabética e por ordem decrescente de frequência.
  Para efeitos de análise e comentário às representações dos animais recenseados, procedemos, no entanto, ao seu agrupamento por grandes grupos. Assim, por ordem decrescente da sua difusão e conhecimento entre os leigos, consideraremos, sucessivamente, quatro grandes grupos: as hagiografias e os livros de milagres, os textos sagrados, os bestiários e os textos de polémica e conduta religiosa.
  Entre os textos do primeiro grupo, dedicados à celebração e comemoração dos cristãos exemplares a fim de doutrinar os comportamentos dos fiéis e de lhes transmitir, de forma directa ou indirecta, os escritos e as doutrinas bíblicas, encontram-se, na verdade, as fontes letradas clericais mais próximas em auditório e em linguagem da grande massa dos leigos, tanto mais que a sua repetição anual durante as festas litúrgicas dos santos que celebravam, tornava as suas histórias, frequentemente transmitidas por via oral, bastante conhecidas entre os devotos que deles esperavam graças e milagres.
  No que respeita ao caso específico dos livros de milagres, surgidos a partir do momento em que a autoridade papal tomou para seu cargo a homologação do culto dos santos a venerar, é certo que, por vezes, implicaram o preparatório registo notarial dos milagres atribuídos aos candidatos à santidade por parte de letrados leigos. Contudo, mesmo assim, pareceu-nos justificado integrar os escritos deste último tipo no mesmo grupo, já que, em última análise, eles tiveram como principais impulsionadores os eclesiásticos interessados na oficialização e promoção do culto do santo a promover.
  Quanto ao segundo grupo de fontes, as que denominámos de textos sagrados, correspondem a obras compiladas a partir da Vulgata, com acrescentos de escritos de exegese cristã, apócrifos do Novo Testamento, excertos de obras clássicas e, entre outros materiais, considerações e notações avulsas dos próprios autores. Este conjunto de traduções portuguesas dos textos sagrados, não teria tido a mesma divulgação entre os leigos do reino de que as hagiografias e os livros de milagres. Porém, o facto de se terem produzido, revela, sem dúvida, como então foi sentida a vontade de uma maior acessibilidade do texto bíblico e dos seus comentários entre os clérigos letrados do reino, o que, por seu lado, certamente também possibilitou uma sua maior difusão entre os auditórios leigos onde agiam e actuavam.
  De resto, para o estudo a efectuar sobre a presença dos animais na cultura clerical, eles revelam-se de uma importância decisiva. Com efeito, os textos bíblicos representam a fonte mais determinante para a caracterização da visão medieval do mundo animal, sendo a partir do simbolismo, das funções e atributos neles aplicados aos seres naturais que o seu sentido foi sendo exposto e difundido nos diversos textos letrados dos eclesiásticos da Idade Média.
  Relativamente aos bestiários, em cujo grupo foi incluído, como já adiantámos, o Horto do Esposo, a sua directa circulação e conhecimento ainda se deve ter restringido mais aos clérigos letrados, não obstante terem constituído nos tempos medievais a melhor fonte de informação e de transmissão sobre o comportamento simbólico dos animais. Tendo como obra paradigmática e fundadora o Physiologus, os textos incluídos neste grupo procuravam transmitir as verdades da fé a seguir pelos crentes, através de um processo alegórico-simbólico que parte da descrição dos costumes atribuídos a determinados animais.
  A partir do século XIII, no entanto, a influência da obra aristotélica começou a provocar algumas transformações no género, começando a prevalecer a tendência para a simples nomeação dos atributos comportamentais dos seres do mundo animal, enquanto se marginalizam ou até omitem aspectos implicados na respectiva decifração simbólico-alegórica. Contudo, essa evolução, cujo exemplo mais significativo a nível ocidental é o De animalibus de Alexandre Magno, não se encontrou de forma bem nítida nos bestiários elaborados após a divulgação dos textos aristotélicos, já que os novos dados transmitidos por estes, aparecem sobretudo utilizados de forma a ampliar o conjunto dos atributos animais a serem depois decifrados pelo processo alegórico-simbólico, não tendo assim provocado, desde logo, grande interesse o desenvolvimento das metodologias seguidas pelo Esteragita para a explicação e compreensão da natureza.
  Por fim, o grupo designado de textos de polémica e conduta religiosas, engloba as obras cujo objectivo é a de precisar, quer os dogmas da fé a defender nas controvérsias cultas e letradas com os defensores das religiões islâmicas e judaicas, quer os comportamentos a seguir ou a evitar pelos cristãos espiritualmente rigorosos, nomeadamente os membros das instituições religiosas. No seu conjunto, abordam temas e problemáticas particularmente desenvolvidos entre os clérigos letrados e as comunidades regulares, e só muito indirectamente estando relacionados com os interesses e as práticas religiosas próprias dos quotidianos dos leigos.
  De uma forma geral, a metodologia de análise e apresentação da presença dos animais em cada um destes quatro grupos de textos varia entre si e até no seu próprio interior. Assim, se nas hagiografias cada animal é objecto, à excepção dos que se encontram escassamente citados, de um estudo isolado, a que se segue a análise sobre as diversas espécies referidas e, por fim, uma apreciação global sobre o sentido lexical das menções a “besta” e a “animalia” ou “animalha”, já nos chamados textos sagrados, os animais surgem referenciados a partir do desempenho de idênticas funções textuais. Por outro lado, relativamente aos bestiários e aos textos de polémica e de conduta religiosas, ora se utiliza a análise isolada de diversos animais registados, ora a que privilegia o seu agrupamento segundo critérios temáticos ou função textual, conforme os dados e a estrutura narrativa própria de cada fonte, justificando-se uma tal pluralidade de registos de abordagem pela extrema diversidade dos temas, géneros e estrutura narrativa das fontes em análise.

  Por fim, chamamos a atenção de considerarmos no nosso estudo seres míticos da Antiguidade, como os sátiros e as sereias, e certos tipos de raças monstruosas divulgadas sobretudo através das obras de Plínio e de Solino. Uma vez que pretendemos abordar a visão do animal no mundo medieval, o facto de tais seres surgirem, por vezes, descritos com características e costumes que os associam a comportamentos ou fisionomias próximas das “animalias”, levou-nos a optar por os referenciar, sempre que os textos em análise assim procedam.