Link to the PhD thesis / Link para a tese de doutoramento - Pedro Chambel: Os Animais na Literatura Clerical Portuguesa dos Séculos XIII e XIV - Presença e Funções
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Introdução
Na
Idade Média, a natureza impunha-se à
sociedade, marcando os seus ritmos, quotidianos e a própria sobrevivência das
comunidades. Na verdade, a sociedade medieval, sendo maioritariamente rural,
receava a natureza e as consequências muitas vezes negativas que ela podia
trazer à estabilidade económica e social. Em grande parte temida, era por isso
respeitada e sacralizada no âmbito duma mentalidade fundamentalmente mágica,
mesmo quando os clérigos se referiam à força e aos poderes da natureza como
manifestações e revelações que remetiam para o Criador e para a sagrada
capacidade de dispensar graças e punições.
De
facto, S. Agostinho, seguindo uma linha de pensamento que remontava à
patrística grega, concebia o mundo como um livro de origem divina que, à
semelhança das Sagradas Escrituras, precisava de ser lido e descodificado em
função do seu Demiurgo e Criador. Ora, esta visão cosmológica, com grandes
repercussões no desenvolvimento de um pensamento que encarava a natureza como
um conjunto de símbolos e manifestações divinas, afastava qualquer tentativa de
olhar o mundo físico como realidade a analisar e a manipular. Durante a Idade Média
rural, o olhar letrado sobre a natureza fazia-se com base na comunicação entre
o homem e a divindade e passava por um caminho que privilegiava a
interiorização mística.
Uma tal
interpretação alegórico-simbólica da natureza foi sobretudo transmitida pelos
lapidários, herbários e bestiários. Com base no Physiologus, um texto cristão
provavelmente elaborado em Alexandria, apresentavam os comportamentos e as
características que a tradição letrada da tradição da Antiguidade Clássica
atribuíra aos animais e outros elementos e seres da natureza como símbolos de
um mundo concebido enquanto manifestação do Criador e por ele destinado a
comunicar as vivências e as condutas a seguir pelos cristãos. De resto, todas
estas obras também tiveram nas Etimologias,
a grande obra enciclopédica escrita no século VII pelo bispo hispânico Isidoro
de Sevilha, uma fonte decisiva, dado os conhecimentos herdados do helenismo
tardio e da cultura letrada romana nela se encontrarem sistematicamente
explicados por um método etimológico-analógico que acentuava e desenvolvia o
suposto carácter teofânico das manifestações naturais.
Por
outro lado, também então as hagiografias, divulgadas pelos clérigos, começaram
a contribuir para a difusão da imagem dos animais enquanto seres mediadores ou
evocadores da suposta santidade dos eleitos, sobretudo porque se apresentavam
como objecto dos milagres dos santos, na linha, aliás, do que numerosos
apócrifos do Novo Testamento assinalavam, nomeadamente, a respeito dos
prodígios que teriam protagonizado os eleitos e o próprio Cristo na sua
infância(1). Tudo isto, enquanto a arte medieval cristã desenvolvia os
processos da representação simbólica da natureza e dos seus seres através da
apresentação dos animais enquanto sinais identificadores, ora dos homens
tocados pela graça divina, ora da obra do Criador, como dos então considerados
mais significativos momentos das Sagradas Escrituras.
Em
suma, devidamente enquadrados pela oratória dos clérigos, os animais
assumiam-se como símbolos de particular eficácia, conduzindo o homem para a
contemplação da obra de Deus, por via de um processo “revelador” dos princípios
da fé cristã e do próprio Demiurgo para os quais remetiam. Um exemplo maior
encontra-se na representação simbólica dos quatro evangelista por três animais
e um homem, segundo uma iconografia que teve a sua origem teórica em S. Irineu , e que remete,
quer para os momentos mais decisivos da vida terrena de Cristo, quer para as
principais virtudes humanas(2), significando que “Cristo Redentor não se isola
no Céu”, mas, “pelo contrário, comunica com os homens por meio da sua Palavra”
(3).
No
entanto, se o pensamento simbólico dos clérigos tende a influenciar ou a
sobrepor-se a uma visão mágica do mundo físico, nunca chegou a anular a
presença de uma representação quotidiana e vivencial dos animais, dado ela ser
própria de uma sociedade rural que se apresentava marcada pelo contacto íntimo
dos humanos com os seres que com eles conviviam, acompanhando-os, servindo-os,
ameaçando-os ou dando-lhes as matérias-primas essenciais para a sua reprodução
social. De facto, essa outra realidade apontava para a possibilidade de uma
visão do mundo e da natureza bem diferente da transmitida pelos letrados
cristãos.
A
partir do século XII, a expansão rural permitida pelas grandes arroteias e o
paralelo desenvolvimento das vilas e cidades, possibilitaria a progressiva
afirmação de um novo olhar sobre a natureza, feito a partir das comunidades
urbanas onde a dependência social tende a ser menos forte do que a vigente no
mundo rural tradicional. A natureza passa então a associar-se às
matérias-primas que podiam e deviam ser obtidas, trabalhadas e comercializadas,
começando, portanto, a ganhar forma a progressiva distanciação homem-natureza
que iria despertar o lento desenvolvimento de uma visão racionalizante do
mundo.
Entretanto, ao possibilitar a prática do enfrentamento com as forças
inóspitas do mundo natural, o movimento das arroteias também começara a marcar
as comunidades rurais com a ideia de um seu possível triunfo sobre a natureza,
tal como então o demonstrava a acção da ordem de Cister que, num labor de
ordenação natural, construía os seus mosteiros nos lugares outrora dominados
pelas incontroladas e temidas forças naturais. Ao mesmo tempo que os espaços das
grandes florestas passavam agora a ser progressivamente habitados por
comunidades que tinham tido percursores nos eremitas, os religiosos que neles
se refugiaram para viver uma vida de reclusão e de contemplação bem longe dos
tumultos das cidades. Como afirma J. Le Goff, é a partir do século XII que a
“própria floresta está toda ela marcada por signos cristãos”(4).
De
acordo com Aron I. Gurevitch, assiste-se a partir de então aos começos de uma
irreversível “«reabilitação» do mundo e da natureza”. Mais habilitados a agir
sobre o mundo circundante, os homens do século XII começam a considerá-lo mais
atentamente, ao mesmo tempo que o estudo e a explicação da natureza suscitam um
interesse crescente. Contudo, não se trata propriamente da natureza enquanto
tal, dado não ser concebível em si mesma, fora da condição de criação de Deus e
forma de o glorificar(5).
Com
efeito, quando os filósofos do século XII falam da necessidade de estudar a
natureza, referem-se à necessidade de a conhecer para o homem nela se descobrir
si próprio e de, através desse conhecimento, progredir rumo à compreensão da
ordem divina e do próprio Deus. No fundo, a observação da natureza processa-se
no âmbito de uma fé na unidade da beleza do mundo, mas ao mesmo tempo, de que
este fora criado por Deus para fornecer ao homem o lugar central. Citando mais
uma vez Gurevitch, a “natureza era compreendida como um espelho no qual o homem
podia contemplar a imagem de Deus”(6). Seria então através dela que o homem
podia comunicar com Deus, partindo da observação da sua criação para sobre ela
meditar e assim alcançar o conhecimento de si próprio, ou seja, o do centro da
obra divina e da própria divindade.
Porém,
paralelamente, a grande penetração de textos letrados de origem greco-romana e,
em particular, as traduções e comentários árabes dos tratados de Aristóteles,
sobretudo intensas a partir do último quartel do século XII, marcavam,
decisivamente, o desabrochar de uma nova cosmovisão. Segundo José Acácio Aguiar
de Castro, “para a medievalidade, tratava-se não só do contacto de um novo
sistema” de organização e funcionamento do Universo, “mas sobretudo de uma
reformulação completa dos princípios de abordagem de fenómenos naturais, dando
primazia ao princípio da causalidade física, à descoberta organicista e
mecanicista dos fenómenos naturais”(7). Na verdade, assistia-se então, a partir
dos textos aristotélicos, à difusão de uma monumental obra teórica, baseada na
observação dos fenómenos naturais e pronta a criar roturas no método
simbólico-alegórico de decifração da natureza.
De
facto, foi entre os letrados urbanos que se começaram a abrir novos caminhos e
perspectivas de análise dos fenómenos e elementos naturais, advogando-se e
praticando-se várias propostas experiencialistas para encontrar e enunciar as
leis que regiam a natureza. Contudo, se as cidades do século XII marcam os
primórdios da afirmação de uma visão racionalizante do mundo, nunca a sociedade
medieval deixou de permanecer tributária a uma concepção simbólico-alegórica da
natureza, mesmo durante a Baixa Idade Média.
É neste
contexto, aliás, que se justifica a utilização de textos elaborados nos séculos
XIII e XIV para caracterizar a forma como se manifestou e difundiu a concepção
simbólica e sacralizada da natureza, sobretudo os que tiveram origem em centros
de produção letrada.
De
resto, sendo o objectivo da presente investigação o estudo da presença e das
características da representação dos animais num tal conjunto de textos, em
ordem a definir e detectar a forma como moldaram e influenciaram as concepções
dominantes do mundo e da natureza na sociedade medieval portuguesa, não nos
restavam muitos e significativos testemunhos anteriores. Com efeito, antes do
século XIII, não seria possível dispor de um corpus letrado susceptível de permitir um inquérito deste tipo,
visto até então serem muito escassos os textos disponíveis em
galaico-português, não havendo, para além disso, qualquer garantia de que as
fontes latinas legadas pelo Portugal do século XII tivessem sido certamente produzidas
ou até lidas pelos letrados do reino. Na verdade, de uma forma geral, é apenas
a circunstância de que todos os textos a seguir estudados se encontrarem
redigidos em língua vulgar, o que permite considerar as imagens dos animais
neles registadas como representativas das concepções presentes entre um grupo
que influenciou culturalmente uma significativa parcela da sociedade medieval
portuguesa.
Por
outro lado, se tivéssemos em conta para o presente trabalho a produção
literária do mesmo tipo elaborada no país de Quatrocentos, seria muito difícil
nela não deparar com influências mais ou menos directas das novas
representações urbanas acerca da natureza. Ao mesmo tempo que num plano
prático, passaríamos a dispor de um conjunto demasiado extenso de obras a
investigar e a analisar.
Contudo, apesar de defendermos a pertinência metodológica do recorte
cronológico escolhido, o dos séculos XIII e XIV, nem sempre se revelou fácil ou
aconselhável cumpri-lo rigorosamente. Em primeiro lugar, porque permanecem
várias indefinições e incertezas sobre a precisa centúria da produção de muitos
textos entre os editores e os estudiosos, levando-nos a seguir, em princípio,
as propostas de datações mais recentes que recuam algumas datas da respectiva
elaboração ou primitiva redacção. Em segundo lugar, porque existindo algumas
obras imprecisamente atribuídas aos começos do século XV, como seja o Horto do Esposo, conservam, a par se
inovadoras influências aristotélicas, muitas das características próprias de
textos anteriores, sendo, portanto, desaconselhável não ter em conta os seus
dados para ampliar e aprofundar a nossa investigação.
Assim,
considerando a existência de critérios de ordem temática ou tipológica que, em
alguns casos, se sobrepuseram aos de ordem cronológica de produção, baseámos o
nosso estudo num total de trinta e sete textos, encontrando-se explicitados no
corpo da investigação, quando polémicas, as razões da respectiva selecção. Em
anexo, figura, por outro lado, a especificação e contabilização dos animais
relativa à presença destes nos textos clericais em cada grupo temático
considerado, por ordem alfabética e por ordem decrescente de frequência.
Para
efeitos de análise e comentário às representações dos animais recenseados,
procedemos, no entanto, ao seu agrupamento por grandes grupos. Assim, por ordem
decrescente da sua difusão e conhecimento entre os leigos, consideraremos,
sucessivamente, quatro grandes grupos: as hagiografias e os livros de milagres,
os textos sagrados, os bestiários e os textos de polémica e conduta religiosa.
Entre
os textos do primeiro grupo, dedicados à celebração e comemoração dos cristãos
exemplares a fim de doutrinar os comportamentos dos fiéis e de lhes transmitir,
de forma directa ou indirecta, os escritos e as doutrinas bíblicas,
encontram-se, na verdade, as fontes letradas clericais mais próximas em
auditório e em linguagem da grande massa dos leigos, tanto mais que a sua
repetição anual durante as festas litúrgicas dos santos que celebravam, tornava
as suas histórias, frequentemente transmitidas por via oral, bastante
conhecidas entre os devotos que deles esperavam graças e milagres.
No que
respeita ao caso específico dos livros de milagres, surgidos a partir do
momento em que a autoridade papal tomou para seu cargo a homologação do culto
dos santos a venerar, é certo que, por vezes, implicaram o preparatório registo
notarial dos milagres atribuídos aos candidatos à santidade por parte de
letrados leigos. Contudo, mesmo assim, pareceu-nos justificado integrar os escritos
deste último tipo no mesmo grupo, já que, em última análise, eles tiveram como
principais impulsionadores os eclesiásticos interessados na oficialização e
promoção do culto do santo a promover.
Quanto
ao segundo grupo de fontes, as que denominámos de textos sagrados, correspondem
a obras compiladas a partir da Vulgata, com acrescentos de escritos de exegese
cristã, apócrifos do Novo Testamento, excertos de obras clássicas e, entre
outros materiais, considerações e notações avulsas dos próprios autores. Este
conjunto de traduções portuguesas dos textos sagrados, não teria tido a mesma
divulgação entre os leigos do reino de que as hagiografias e os livros de
milagres. Porém, o facto de se terem produzido, revela, sem dúvida, como então
foi sentida a vontade de uma maior acessibilidade do texto bíblico e dos seus
comentários entre os clérigos letrados do reino, o que, por seu lado,
certamente também possibilitou uma sua maior difusão entre os auditórios leigos
onde agiam e actuavam.
De
resto, para o estudo a efectuar sobre a presença dos animais na cultura
clerical, eles revelam-se de uma importância decisiva. Com efeito, os textos
bíblicos representam a fonte mais determinante para a caracterização da visão
medieval do mundo animal, sendo a partir do simbolismo, das funções e atributos
neles aplicados aos seres naturais que o seu sentido foi sendo exposto e
difundido nos diversos textos letrados dos eclesiásticos da Idade Média.
Relativamente aos bestiários, em cujo grupo foi incluído, como já
adiantámos, o Horto do Esposo, a sua
directa circulação e conhecimento ainda se deve ter restringido mais aos
clérigos letrados, não obstante terem constituído nos tempos medievais a melhor
fonte de informação e de transmissão sobre o comportamento simbólico dos animais.
Tendo como obra paradigmática e fundadora o Physiologus,
os textos incluídos neste grupo procuravam transmitir as verdades da fé a
seguir pelos crentes, através de um processo alegórico-simbólico que parte da
descrição dos costumes atribuídos a determinados animais.
A
partir do século XIII, no entanto, a influência da obra aristotélica começou a
provocar algumas transformações no género, começando a prevalecer a tendência
para a simples nomeação dos atributos comportamentais dos seres do mundo animal,
enquanto se marginalizam ou até omitem aspectos implicados na respectiva
decifração simbólico-alegórica. Contudo, essa evolução, cujo exemplo mais
significativo a nível ocidental é o De
animalibus de Alexandre Magno, não se encontrou de forma bem nítida nos
bestiários elaborados após a divulgação dos textos aristotélicos, já que os
novos dados transmitidos por estes, aparecem sobretudo utilizados de forma a
ampliar o conjunto dos atributos animais a serem depois decifrados pelo
processo alegórico-simbólico, não tendo assim provocado, desde logo, grande
interesse o desenvolvimento das metodologias seguidas pelo Esteragita para a
explicação e compreensão da natureza.
Por
fim, o grupo designado de textos de polémica e conduta religiosas, engloba as
obras cujo objectivo é a de precisar, quer os dogmas da fé a defender nas
controvérsias cultas e letradas com os defensores das religiões islâmicas e
judaicas, quer os comportamentos a seguir ou a evitar pelos cristãos
espiritualmente rigorosos, nomeadamente os membros das instituições religiosas.
No seu conjunto, abordam temas e problemáticas particularmente desenvolvidos
entre os clérigos letrados e as comunidades regulares, e só muito
indirectamente estando relacionados com os interesses e as práticas religiosas
próprias dos quotidianos dos leigos.
De uma
forma geral, a metodologia de análise e apresentação da presença dos animais em
cada um destes quatro grupos de textos varia entre si e até no seu próprio
interior. Assim, se nas hagiografias cada animal é objecto, à excepção dos que
se encontram escassamente citados, de um estudo isolado, a que se segue a
análise sobre as diversas espécies referidas e, por fim, uma apreciação global
sobre o sentido lexical das menções a “besta” e a “animalia” ou “animalha”, já
nos chamados textos sagrados, os animais surgem referenciados a partir do
desempenho de idênticas funções textuais. Por outro lado, relativamente aos
bestiários e aos textos de polémica e de conduta religiosas, ora se utiliza a
análise isolada de diversos animais registados, ora a que privilegia o seu
agrupamento segundo critérios temáticos ou função textual, conforme os dados e
a estrutura narrativa própria de cada fonte, justificando-se uma tal
pluralidade de registos de abordagem pela extrema diversidade dos temas,
géneros e estrutura narrativa das fontes em análise.
Por
fim, chamamos a atenção de considerarmos no nosso estudo seres míticos da
Antiguidade, como os sátiros e as sereias, e certos tipos de raças monstruosas
divulgadas sobretudo através das obras de Plínio e de Solino. Uma vez que
pretendemos abordar a visão do animal no mundo medieval, o facto de tais seres
surgirem, por vezes, descritos com características e costumes que os associam a
comportamentos ou fisionomias próximas das “animalias”, levou-nos a optar por
os referenciar, sempre que os textos em análise assim procedam.